As grandes distribuidoras de combustíveis, os maiores produtores de biodiesel do Brasil, a bancada ruralista, a ANP e, por fim, o crime organizado formam hoje uma mistura com considerável poder de combustão.
Em maior ou menor octanagem, todos esses atores estão no centro de uma queda de braço que põe em risco o cumprimento da Lei do Combustível Futuro, aprovada no ano passado com o objetivo de estimular a produção de fontes renováveis no país. As distribuidoras, à frente Raízen, Vibra, Ultra/Ipiranga, entre outras, discutem ações contundentes na tentativa de suspender a mistura de 14% de biodiesel ao diesel, estipulada pela nova legislação.
Segundo informações que circulam em petit comité no setor, as empresas cogitam levar o caso à Justiça. As distribuidoras estariam, inclusive, elaborando um dossiê para embasar sua argumentação. A alegação é que as fraudes na composição do diesel vêm aumentando consideravelmente com o aumento do percentual de adição do biodiesel. Há estimativas de que até 40% do biodiesel misturado ao diesel apresentam irregularidades.
Os grandes grupos de distribuição afirmam que é cada vez mais difícil competir com esse mercado paralelo, que, graças a falcatruas, trabalha com preços até 20% inferiores na bomba. No setor, grande parcela das fraudes é atribuída à notória presença de facções criminosas, notadamente o PCC (Primeiro Comando da Capital), no negócio de distribuição de combustíveis. O próprio governador de São Paulo, Tarcísio Freitas, já disse publicamente que o PCC controla mais de mil postos no estado.
Diante desses dados e da crescente concorrência com o crime organizado, as distribuidoras de combustíveis parecem estar bem calçadas em suas alegações para suspender as novas regras de adição de biodiesel ao diesel – pela Lei do Combustível do Futuro, o índice da mistura chegará a 20% em 2030. Mas há controvérsias. Esse está longe de ser um assunto pacificado, a começar pelo órgão regulador. Em março, o Sindicom (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes) solicitou à ANP que suspendesse a adição de 14% de biodiesel ao diesel por 90 dias.
No entanto, a diretoria da agência negou o pedido por unanimidade. Mais do que isso: sutilmente, a ANP deu a entender que se há alguma “inconformidade” é nos dados usados pelo Sindicom para embasar as denúncias de fraude na mistura do diesel. Segundo parecer da área técnica da agência, os números apresentados pela entidade “não refletem a realidade estatística do país, em função do direcionamento da escolha dos locais de coleta das amostras de combustíveis”.
Nesse cenário, a judicialização do caso desponta como uma forma das grandes distribuidoras pressionarem a ANP e o próprio Ministério de Minas e Energia a suspender, ainda que temporariamente, a nova política de adição de biodiesel ao diesel. O que existe é um duelo entre grupos de interesse. Além da ANP, a argumentação das distribuidoras de combustíveis também encontra forte resistência entre produtores de biodiesel e parte da bancada ruralista.
Logo após a requisição do Sindicom à ANP, a Frente Parlamentar do Biodiesel veio a público e classificou a iniciativa como um “ardil pouco transparente para eliminar as energias renováveis” e um “ataque à soberania nacional”, uma vez que a política de adição de biodiesel ao diesel garante “à cadeia da soja e proteínas a participação de 25,8% na pauta de exportações” e assegura “a manutenção de 16 milhões de empregos diretos e indiretos”.
Em conversas reservadas, produtores de biocombustível acusam as distribuidoras de usar as irregularidades como subterfúgio para descumprir a nova legislação e driblar a obrigatoriedade dos percentuais de mistura. Ou seja: tudo não passaria de um estratagema para escapar do forte aumento dos preços do biodiesel. No ano passado, a alta chegou a 45%.
A eventual judicialização do caso pelas distribuidoras será uma faísca a mais perto do combustível. O RR entrou em contato com o Sindicom, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. Por sua vez, a Aprobio (Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil) afirma que a decisão da ANP de manter a mistura em 14% “foi correta”. Nem poderia ser diferente. A associação diz ainda que “a fiscalização e a punição dos infratores é o único caminho para garantir para a toda a sociedade o direito a ter uma energia limpa, que garanta mais saúde para todos”.
A Aprobio diz ainda que entidades ligadas ao setor de distribuição de combustíveis, entre as quais ela própria e o Sindicom, “estão investindo R$ 1,3 milhão para a doação de cinco espectrofotômetros”. Trata-se de um aparelho que permite a identificação de fraudes na mistura do biodiesel ao diesel in loco, além de ser capaz de detectar a presença de metanol na gasolina. A ANP contava com apenas um desses equipamentos, doado pelo Ministério Público do Estado de Sergipe (MPSE).
Fonte: Relatório Reservado | Noticias
